Ontem, dia 18 de março desde 2021 tresloucado, foi um dia muito especial: finalmente, após muitos meses de revisão e discussões muito instrutivas com os revisores, o artigo do meu trabalho de dissertação de mestrado foi publicado! Nele, demonstramos que a planta parasita, a bizarríssima e quase alienígena cuscuta (Cuscuta racemosa) é capaz de diferenciar espécies distintas de hospedeiros e mudar o seu comportamento de acordo com o que ela percebe! Além disso, notamos o que pode ser a primeira evidência empírica de um processo de atenção em plantas. Isso mesmo que você leu: atenção. Teoricamente a planta estaria prestando atenção.
Breve contextualização: o trabalho foi feito durante o meu mestrado no na Universidade Federal de Pelotas, ultimamente muito famosa, no Programa de Pós-Graduação em Fisiologia Vegetal e no Laboratório de Cognição e Eletrofisiologia Vegetal, o LACEV. Lá, foi realizado com a orientação do Prof. Dr. Gustavo Maia Souza e a participação de vários colegas, fundamentais para o sucesso dessa pesquisa, deve-se dizer! Feitas as formalidades, vamos ao que interessa, ou seja, a cuscuta.
Essa planta não possui folhas e nem raízes, e sequer faz fotossíntese (exceto certas espécies, como a nossa Cuscuta racemosa, mas ainda assim a uma taxa muito baixa). Ela se assemelha a um amontoado de filamentos alaranjados que crescem sobre outras plantas. Quando fazem isso, as cuscutas dão um jeito de penetrar as suas plantas hospedeiras com estruturas chamadas hifas, que se conectam aos vasos das plantas hospedeiras e sugam a seiva delas num verdadeiro vampirismo vegetal. Muitos estudos têm demonstrado que a cuscuta escolhe a melhor planta para parasitar quando tem mais de uma opção e isso nos levou a indagar: se a cuscuta escolhe entre hospedeiros, ela deve de algum modo reconhecer a diferença de um para outro, e esse reconhecimento deve causar alterações no funcionamento dela (sua fisiologia). Logo, se pudéssemos observar o que está acontecendo dentro da cuscuta quando ela percebe um hospedeiro na vizinhança, será que teriam diferenças nesse funcionamento dependendo do hospedeiro percebido?
A nossa hipótese era de que sim. Em particular, nós tínhamos algumas hipóteses. Primeiro, a cuscuta percebe a presença de hospedeiros perto dela. Segundo, dependendo da presença e espécie do hospedeiro, a cuscuta iria produzir quantidades diferentes de pigmentos relacionados à sua fraca fotossíntese. E, como trabalhamos com eletrofisiologia, hipotetizamos (estou tentando fazer essa palavra vingar, por favor, adiram!) que a atividade bioelétrica da cuscuta seria diferente dependendo da presença e espécie do hospedeiro presente perto dela.
Para testar as hipóteses, nós realizamos alguns experimentos colocando ramos de cuscuta dentro de uma caixa e perto de dois tipos de hospedeiros diferentes: uma planta de feijão ou uma planta de trigo, num esquema como o da figura abaixo.
Depois de deixar as cuscutas uma semana nessa condição, nós mensuramos a quantidade de pigmentos dos ramos. Além disso, em outro experimento, parecido com o da figura também, fizemos uma análise análoga ao eletroencefalograma, chamada de eletrofitograma, em que colocamos eletrodos nas plantas para monitorar a sua atividade bioelétrica na ausência e presença de hospedeiros na caixa. O resultado foi que, de fato, a cuscuta percebe quando há hospedeiros por perto e muda seu comportamento dependendo do tipo de hospedeiro presente. Por exemplo, quando não tem nenhum hospedeiro perto dela, a cuscuta produziu mais pigmentos relacionados à fotossíntese, o que nós interpretamos como uma tentativa de prolongar a sua sobrevivência por meio de alguma atividade fotossintética. O mesmo foi confirmado pela atividade bioelétrica, que é diferente quando tem um hospedeiro por perto.
Além disso, a quantidade de pigmentos e atividade bioelétrica é distinta dependendo do tipo de hospedeiro presente. Ou seja, existe um padrão elétrico associado a cada tipo de hospedeiro. A presença do feijoeiro causava um efeito nos sinais bioelétricos e a presença do trigo, outra. Em conclusão, a cuscuta reconhece, à distância, hospedeiros de espécies diferentes!
E o mais surpreendente foi outro resultado inesperado desse trabalho: devido a um certo padrão de funcionamento dos sinais bioelétricos da cuscuta (a saber, os sinais ficaram menos "aleatórios", mais organizados, regulares e previsíveis, além de mais fortemente correlacionados entre si), nós acreditamos ter encontrado a primeira evidência empírica de um processo ou estado de atenção em uma planta! Possivelmente, a cuscuta estava prestando atenção na sua presa logo ali, perto dela, focando numa estratégia para atacá-la e "se concentrando" nisso.
É importante fazer a ressalva de que os nossos resultados ainda não são um fato científico consumado! Apesar do artigo ter sido publicado numa revista científica reconhecida e revisado por pares, ou seja, é confiável, ele apenas abre a possibilidade de estudar processos como atenção em plantas. Para se tornar um fato universalmente aceito, ainda há muito trabalho pela frente. Eu espero que esse artigo comece causando uma enorme discussão no meio científico, sendo que alguns irão discordar, outros irão concordar, e espero que isso encoraje outros pesquisadores a replicarem esses experimentos, ou fazerem experimentos semelhantes, para só então pudermos avaliar o conjunto de evidências e tentar chegar a um consenso. Quem sabe o que vai sair disso?
No entanto, é claro que é uma pesquisa interessante e eu fico feliz que, em meio às agruras e amarguras que a nossa ciência nacional vem sofrendo nos últimos anos e (des)governos, nós conseguimos publicar em uma revista de acesso aberto, ou seja, qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo poderá baixar o artigo gratuitamente! Apesar de não ser fácil publicar em revistas assim, pois é muito caro e nem sempre se consegue recursos para isso, desta vez conseguimos! Isso é maravilhoso porque o conhecimento científico pertence à humanidade e deveria estar acessível a todas as pessoas.
Sem mais delongas, o trabalho foi feito na Universidade Federal de Pelotas, junto ao Programa de Pós-Graduação em Fisiologia Vegetal, no LACEV e com a orientação do Prof. Dr. Gustavo Maia Souza. Assinam o trabalho, além de mim e do Prof. Gustavo, Gabriela Niemeyer Reissig, Luis Felipe Basso, Luiz Gustavo Schultz Senko, Thiago Francisco de Carvalho Oliveira, Gabriel Ricardo Aguilera de Toledo e Arlan Silva Ferreira.
Além disso, quem se interessar por ler mais a fundo, pode baixar o trabalho no saite da Frontiers in Plant Science. Muito obrigado e até a próxima!
Que demais!!! Parabéns, André e toda a turma do LACEV!