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Foto do escritorAndré Geremia Parise

A cognição estendida das plantas

Atualizado: 12 de nov.


Floresta de pinheiros com nevoeiro
Plantas podem estar estendendo o seu processo cognitivo aos elementos do ambiente que elas modificam. Onde a cognição de uma planta termina e o ambiente começa?

Acaba de sair um artigo no qual desenvolvemos um pouco mais a hipótese da cognição estendida em plantas. Em particular, exploramos o que ela significa para o entendimento do que é uma planta de um ponto de vista fisiológico, ecológico e filosófico. Além disso, discutimos quatro estudos de caso para as quatro formas de extensão da cognição das plantas propostas até o momento. É um aprofundamento do que já foi proposto em 2020 e discutido no artigo sobre a teia de Ariadne, publicado no início do ano.


Em primeiro lugar, por "nós" eu quero dizer Michael Marder e eu. Michael é filósofo e professor da Universidade do País Basco, na Espanha, além de membro da Ikerbaske, a Fundação Basca de Ciência, cujo trabalho envolve filosofia ecológica e pensamento ecológico, teoria política e fenomenologia. Ele é autor de diversos livros e numerosos artigos, muitos sobre a filosofia da cognição das plantas. Seu livro mais recente, Time is a plant (O tempo é uma planta, em tradução livre) deve sair neste ano publicado pela editora Brill.


E eu... sou eu. Estudante de doutorado na Universidade de Reading (Inglaterra) e alguém tentando compreender como as plantas sustentam seus processos cognitivos e inteligentes, sendo seres tão fascinantes e belos, capazes de sobreviverem em harmonia sobre esta terra por mais de 400 milhões de anos.


Neste trabalho, discutimos um pouco a velha questão do dualismo entre corpo e alma, uma ideia — ou mesmo, paradigma — que domina a ciência ocidental desde os tempos de Platão. Ao longo dos séculos, o conhecimento predominante neste lado do mundo é de que a alma, o espírito, aquilo que dá vida, que anima, era algo separado do corpo, sendo imanente e imaterial. Esse conceito foi perpetuado pela Igreja Católica, já que ajudava a fundamentar muito da teologia cristã, desde a contraposição entre as tentações e pecados da carne (ou seja, do corpo), em oposição às virtudes do espírito até explicar como as almas vão para junto de Deus após a morte enquanto o corpo físico apodrece.


Já no século XVII, inspirado por essas concepções religiosas, o filósofo francês René Descartes aprofundou ainda mais essa tese ao concluir que o corpo e a mente têm naturezas completamente distintas e que, portanto, poderiam inclusive existir um sem a outra (pelo menos, a mente sem o corpo). Enquanto o corpo poderia ser estudado analiticamente, cientificamente, a mente escaparia essa condição, sendo mais que tudo um problema filosófico ou teológico. Descartes sedimentou o dualismo entre corpo e mente ao separar o que compõe os seres humanos em res extensa, ou seja, a coisa estendida, o corpo; e res cogitans, a coisa pensante, a mente.


Uma explanação detalhada dessa distinção cartesiana e suas implicações para a filosofia e ciência contemporâneas requereria não só um post inteiro dedicado a isso, mas livros e livros, teses e mais teses de doutorado, como de fato acontece, portanto não vamos nos aprofundar mais nesse assunto. Saibamos, no entanto, que Descartes estabeleceu o paradigma que iria guiar toda a pesquisa científica sobre o funcionamento da mente praticamente até hoje. Atualmente, não se fala mais de alma, mas de mente, ou cognição, porém a ideia de que ela é feita de algo especial, transcendental, permanece entranhada na maneira como muitos estudam esses fenômenos, frequentemente sem que os cientistas sequer se deem conta.


Uma mudança começou a ocorrer na década de 1970 (como tantas outras naqueles tempos prolíficos!), quando alguns cientistas começaram a propor o abandono da concepção dualista de mente e corpo, com a mente sendo uma “coisa” (res, em latim). Cientistas como Gregory Bateson, Humberto Maturana e Francisco Varela, dentre muitos outros, propuseram que a mente, ou cognição, são, ao contrário, um processo que acontece no corpo e pelo corpo. O processo cognitivo não é algo sobrenatural que habita em nós, implicando uma distinção clara do que é cognitivo e o que não é, mas o produto do funcionamento dos nossos corpos. Cognição é o efeito observável de um tipo de interação muito especial (é inegável) entre a matéria e energia que compõem os nossos corpos. Todavia, essa é a mesmíssima matéria e energia que encontramos ao nosso redor, porém organizadas noutras formas.


Antes de prosseguirmos, faço uma ressalva: existe muita sobreposição entre os termos mente e cognição, e mesmo entre esses dois termos e consciência. Pessoalmente, eu prefiro utilizar apenas o termo cognição como o processo de perceber o ambiente, processar informações, aprender etc. Mente e/ou consciência são um produto do processo cognitivo quando este se torna autorreflexivo, capaz de estimular a si próprio e gerar percepções sobre seu próprio funcionamento. Enquanto cognição é um fenômeno presente em todas as formas de vida, mente e/ou consciência são provavelmente mais restritas a humanos e alguns outros animais. Isso não quer dizer que permaneça algo sobrenatural na mente, pois estamos sempre falando de fenômenos físicos, e nem significa que outros seres como plantas, fungos e insetos não possam ser conscientes. Nós só não temos evidência empírica disso ainda, embora estejamos participando de uma discussão a esse respeito em relação às plantas.


Os desenvolvimentos da ciência da cognição ao longo da segunda metade do século XX até hoje fizeram com que o processo cognitivo perdesse, ao menos em parte da comunidade científica, o seu estátus “divino” e se tornasse um produto “terreno”, algo que acontece aqui e em interação com a matéria e energia à nossa volta. Uma consequência interessante disso é que o cérebro, que em sua complexidade extraordinária era tido como o único relicário possível para permitir a manifestação da cognição, passasse a ser visto como apenas mais uma estrutura onde esse tipo de interação poderia ocorrer, mas não necessariamente a única. Na verdade, qualquer corpo vivo é cognitivo, desde uma célula até uma baleia-jubarte, e a cognição é entendida por muitos como uma propriedade inerente à vida.


Outra consequência importante dessa mudança de concepção é que não existe mais um motivo concreto pelo qual a cognição deva estar contida no corpo, visto que ela é o produto da interação entre matéria e energia, como já foi dito. Isso abre uma brecha para que o processo cognitivo envolva outras formas de matéria e energia que não necessariamente estão no corpo. Consequentemente, a cognição pode ocorrer parcialmente fora dele, além dos limites impostos pela pele.


Essa ideia é conhecida como tese da cognição estendida e foi proposta por Andy Clark e David Chalmers em 1998, na época para explicar parte do processo cognitivo humano. De acordo com eles, ao manipularmos objetos para auxiliar o nosso processo cognitivo, como ao fazer uma conta matemática usando papel e caneta, o que está ocorrendo é que esses objetos externos ao nosso corpo tornam-se parte da estrutura que sustenta o processo, tendo uma importância assemelhada à dos neurônios, por exemplo. Eles são elementos fundamentais para chegar ao resultado de um cálculo, ao menos para quem nunca foi bom com matemática.


A tese da cognição estendida foi sendo desenvolvida ao longo dos anos e, recentemente, tem encontrado espaço noutras áreas que não são necessariamente relacionadas ao estudo da mente humana. Alguns autores propuseram que aranhas também estendem o seu processo cognitivo às suas teias, outros que os mixomicetos (um tipo de ameba gigante) o fazem também, e o nosso grupo tem trabalhado com a hipótese de que plantas também estendem a sua cognição. A possibilidade de que a extensão da cognição seja relativamente comum na natureza inclusive já foi discutida neste blogue.


Três concepções de cognição estendida em plantas


Antes de discutir como as plantas estendem as suas cognições, é interessante debater o que estender a cognição significa, pois há três sentidos em que o substantivo “cognição estendida” pode ser interpretado: o primeiro remonta a Descartes, de novo.


Segundo o filósofo, somos compostos por um material que se estende no espaço, que ocupa um volume. Essa é a coisa estendida (res extensa). Além disso, seríamos formados também pela transcendente e misteriosa coisa pensante (res cogitans), que nos dá vida, volição, espírito. Como foi dito, essa “coisa” é imaterial, portanto, não estendida. Mas se abandonamos esse dualismo e entendemos a mente como parte inextricável do corpo, então o seu processo necessariamente se estende no espaço tanto quanto o nosso corpo, sendo, deste modo, estendida também.


O segundo sentido seria uma extensão para além dos limites epistemológicos de como a cognição é compreendida por muitos cientistas hoje. Em particular, em relação à ideia cognitivista (referente ao movimento de psicólogos estado-unidenses da metade do século XX). Essa visão entende a cognição como confinada ao cérebro ou ao sistema nervoso central, sendo um processo semelhante a um programa de computador que processa inputs na forma de símbolos codificados em impulsos elétricos nos nossos neurônios para produzir outputs. Entretanto, se compreendemos cognição como um fenômeno que envolve uma gama de processos fisiológicos e de interações da matéria que vão muito além de sinais elétricos em neurônios, há uma extensão no próprio conceito de cognição e na compreensão do que esse fenômeno é.


O terceiro sentido é o mais radical e controverso, e é justamente aquele pretendido por Andy Clark e David Chalmers discutido acima. Ou seja, a cognição se estende para fora do corpo, abarcando objetos que estão além da nossa pele e processos além dos nossos neurônios. Porém, no caso, estamos falando de plantas, que não possuem neurônios nem pele, mas a ideia é igualmente válida. O processo cognitivo de uma planta não precisa estar confinado dentro da sua epiderme, mas também ocorrer fora dela. Além disso, uma das formas das plantas manifestarem a sua cognição é justamente estendendo os seus corpos — através do crescimento — e ocupando espaços onde antes elas não estavam.


Lições da anatomia das plantas


Se prestarmos bastante atenção em como os corpos das plantas são organizados, talvez a ideia de cognição estendida soe até natural. E para isso, uma comparação com a maneira como os animais são organizados pode facilitar a compreensão.


Animais evoluíram como seres heterotróficos, ou seja, que precisam extrair seu alimento a partir do ambiente. Assim, ao longo da evolução, eles foram forçados a se deslocar para encontrar alimento e água. Para fazer isso, ter um corpo compacto ajuda muito, pois é mais fácil mover todos os seus órgãos internos quando eles estão “empacotados”, tendo a menor superfície de contato possível com o ambiente. Essa locomoção também favoreceu a concentração de funções em determinadas áreas do corpo, incluindo os seus sentidos. Geralmente, os órgãos dos sentidos estão localizados na cabeça, a parte do corpo que explora o mundo antes do resto do corpo. No caso humano, por exemplo, se excluirmos o tato, que é um sentido distribuído por toda a pele, todos os outros sentidos (visão, olfato, paladar, audição, equilíbrio) estão concentrados na cabeça. Isso significa que há uma limitação de canais pelos quais os animais podem se engajar com o mundo, pois qualquer interação passa pelos sentidos.


Já as plantas são autotróficas, ou seja, produzem o seu próprio alimento usando a energia do Sol e pequenas moléculas que chegam passivamente até elas (às vezes nem tão passivamente, como veremos a seguir). Assim, para as plantas, e ao contrário dos animais, é mais vantajoso ter a maior superfície de contato possível com o ambiente. Deste modo, elas podem receber uma maior quantidade de luz solar, moléculas de gás carbônico, nutrientes e água provenientes do solo do que se tivessem uma estrutura mais compacta.


Além disso, já que estão enraizadas no mesmo lugar, ou seja, são sésseis, elas não podem se dar ao luxo de centralizar funções como os animais fizeram com seus órgãos internos. Afinal, se uma planta fictícia tivesse um coração para bombear a seiva e um herbívoro comesse exatamente a parte do corpo onde está o seu coração, ela morreria imediatamente sem poder sair do lugar. Um animal, se se sente ameaçado, foge, levando consigo os seus órgãos.


(Um esclarecimento: eu falo de animais levando seus órgãos para lá e para cá puramente como uma figura de linguagem para facilitar o raciocínio. Afinal, é óbvio que um animal não carrega os seus órgãos como se fossem um penduricalho. O animal é os seus órgãos e, portanto, qualquer decisão de ir a qualquer lado envolve toda a sua anatomia).


Esses desafios que o modo de vida séssil traz às plantas levaram a uma adaptação importante: modularidade. Ou seja, as plantas são compostas por módulos, partes semiautônomas, repetidas e redundantes. As plantas só possuem três órgãos que diríamos essenciais: raízes, caule e folhas. E ainda assim, algumas vezes, elas conseguem sobreviver mesmo sem alguns desses órgãos — quem já fez uma mudinha de suculenta a partir de uma única folha sabe disso muito bem. Modularidade significa que, no corpo de uma planta, há mais conexões e interações entre os elementos que compõem os módulos do que entre os módulos entre si, como é possível ver esquematizado na figura abaixo.


Do mesmo modo, os órgãos dos sentidos das plantas tampouco são centralizados: quase todas as folhas ou raízes são capazes de perceber os mesmos estímulos, como luz, gravidade, odores, sons, umidade, etc. Juntando isso à modularidade das plantas, concluímos que os módulos terão mais conexões com o ambiente ao seu redor do que com outros módulos. Para uma folha no topo de uma árvore, as interações com o ar seco e o sol escaldante são mais intensas do que com outra folha na base do dossel que está sendo comida por uma lagarta. Cada folha tem os seus problemas e o seu jeito de lidar com eles, frequentemente sem que isso envolva a interação com outros módulos. Quando, em raros momentos, há uma interação mais intensa entre eles, eu ouso chamar o fenômeno de atenção em plantas, como foi discutido neste post.


Esquema de planta como uma rede de pontos e linhas
Se tentamos compreender as plantas como uma rede de relações, veremos que há uma repetição de partes com mais conexões entre si e com o ambiente do que com outras partes. Esses são os módulos que compõem a planta. Em preto, representação dos elementos da planta e as relações entre si. Em amarelo, elementos do ambiente | Parise e Marder (2023)

A partir desse raciocínio, podemos concluir que a vida de uma planta acontece na superfície, na maior interação possível com o ambiente. E o que acontece fora da planta é tão eficaz para influenciar, de forma quase imediata, a sua fisiologia, que pode ser até mais importante do que o que acontece dentro da própria planta em módulos distantes. A vida da planta são as folhas, é a casca, são as pontas das raízes.


E note que isso é tão verdade que a maior parte da massa de uma planta lenhosa é material morto que ela usará de suporte para crescer sobre, como se fosse um coral que deposita rocha debaixo de si para conseguir subir em direção à superfície. Quando eu lembro das centenárias canelas-pretas e imensas figueiras da minha Floripa, ou contemplo os imponentes carvalhos da Inglaterra onde estou atualmente, gosto de fazer um esforço mental para lembrar que por trás da fina casca dessas árvores imensas está simplesmente madeira morta. Aquilo que valorizamos para construir casas e móveis é, para as plantas, apenas um suporte criado por esse biofilme formidável que é a parte viva das árvores para conseguir ter mais contato com a luz do Sol, o ar e a água. A vida das plantas acontece na superfície.


Galho de árvore cortado com látex escorrendo
Um galho de árvore cortado evidencia que a vida de uma planta acontece na superfície. Plantas são uma fina pátina viva que envolve a madeira morta | Imagem de Rose Antonelli

Os quatro possíveis canais de extensão da cognição das plantas


Se a vida das plantas é tão intrínseca à superfície, é possível que esse tenha sido um passo para a extensão de suas cognições, especialmente porque as plantas são muito eficazes para modificar o ambiente onde elas vivem. Não à toa, sua sombra favorece a vida de muitos organismos, suas raízes redistribuem a água do solo, tornando-o mais úmido, os aerossóis que elas liberam pelas folhas, junto com vapor d’água, forma nuvens que vão chover em lugares distantes. Além disso, plantas ativamente modificam o seu ambiente através da liberação de substâncias químicas pelas raízes, da interação com micro-organismos e a liberação de substâncias químicas voláteis pelas folhas. Essas últimas modificações do ambiente podem causar mudanças na maneira como elas percebem e interagem com o seu entorno, servido de meio para estender a sua cognição.


Compostos orgânicos voláteis: a cognição das plantas na “nuvem”


Já não há dúvidas de que as plantas se comunicam entre si e com animais através de compostos orgânicos voláteis (VOCs, na sigla em inglês). Esse fenômeno é estudado desde a década de 1980 e já se sabe muito sobre quais são os compostos que as plantas liberam no ar e os efeitos que eles causam noutras plantas. Um dos VOCs mais famosos é o etileno, um hormônio gasoso que induz o amadurecimento de certos frutos, entre outras funções. O metil-jasmonato é conhecido por ser liberado por plantas quando são atacadas por herbívoros, o que avisa outras plantas do ataque e as induz a prepararem suas defesas. Há, também, o metil-salicilato, este mais relacionado a infecções por fungos e bactérias.


No entanto, as plantas nunca liberam um ou outro VOC no ar, mas sempre um verdadeiro coquetel de várias moléculas diferentes nas quais estão codificadas mensagens que outras plantas podem entender. Geralmente, são mensagem associadas a ataques de herbívoros ou doenças — o que é justo, considerando que esses talvez sejam alguns dos problemas mais graves que as plantas enfrentam em suas vidas. Assim, uma planta sob ataque pode avisar a outras, que preparam suas defesas aumentando a produção de substâncias que tornam as folhas mais amargas e estimulando a produção de néctar extrafloral, um néctar que atrai formigas e outros insetos que podem atacar os herbívoros. Já foi provado que a comunicação entre as plantas as faz mais resistentes a herbívoros e doenças.


Devido às óbvias aplicações que a comunicação entre plantas pode ter para a agricultura, houve muita ênfase no estudo desse fenômeno. Entretanto, isso acabou por ignorar um fato importante: a comunicação entre plantas provavelmente surgiu não para falar com outros indivíduos, mas como um sistema de comunicação interno da própria planta.


Consideremos dois ramos que estão fisicamente próximos um do outro: se um gafanhoto começasse a comer as folhas de um dos ramos e a planta não produzisse VOCs, o único modo do outro ramo saber desse ataque e se preparar para uma possível predação seria se o ramo sob ataque enviasse sinais elétricos ou químicos por todo o seu comprimento até o caule. De lá, os sinais subiriam até a base do outro ramo e dali até a ponta. Como é de se imaginar, não só há muito espaço para ruídos e perda de informação atrapalharem a troca de sinais, como esse processo poderia levar horas. O gafanhoto seria muito mais rápido para pular de um galho ao outro e comer mais folhas desprevenidas.


A solução evolutiva para isso foram os VOCs. Ao liberar esses VOCs na atmosfera, a planta cria uma ponte invisível entre ramos distantes por onde a informação pode fluir com muito mais eficiência, garantindo assim a integração da copa toda e o correto funcionamento da planta como indivíduo. Só que essas redes de transmissão de informação, tão cruciais para a sobrevivência, ocorrem fora do corpo da planta em uma atmosfera que foi modificada pela própria planta ao responder a um ataque de herbívoros. Essas redes, por sua vez, modificam o comportamento da planta em si. Por isso, podemos dizer que o processo cognitivo das plantas se estende para os VOCs, pois eles têm essencialmente as mesmas funções que redes de comunicação internas, como hormônios e sinais elétricos. A cognição das plantas também está no ar.


Exsudados de raízes e as comunidades de micro-organismos


O tempo todo plantas liberam substâncias químicas pelas raízes que têm diversas funções, desde lubrificar o contato entre as pontas das raízes e o solo até solubilizar nutrientes para torná-los mais fáceis de absorver. Essas substâncias, conhecidas como exsudados, também podem ser tóxicas para outras plantas, como uma forma de competição pelo espaço debaixo da terra. Neste caso, são chamados de exsudados alelopáticos.


Entretanto, alguns exsudados alelopáticos podem ser tóxicos para a própria planta que os produziu, o que pode soar contraintuitivo. Ao investigar o papel dessa sensibilidade aos próprios exsudados, pesquisadores nos Estados Unidos e Israel descobriram uma função surpreendente para essa autotoxicidade: a de ajudar a detectar obstáculos a distância, como se fosse um “sonar químico”. Por exemplo, os pesquisadores israelenses, do grupo de Ariel Novoplansky, cresceram plantas de ervilhas com fios de náilon ao redor das raízes. Quando as raízes cresciam em direção aos fios, os exsudados se acumulavam entre as suas pontas e os fios até atingir uma concentração que fazia as raízes pararem de crescer e até mesmo morrerem na proximidade dos obstáculos. Como resultado, a planta acabava crescendo suas raízes para longe dos fios, organizando-as de modo mais eficiente. O acúmulo de exsudados e sua interação com a planta que os produziu permite a solução de um problema, mas a solução do problema não parte de dentro da planta, e sim de fora dela. O processo cognitivo de perceber obstáculos e reorganizar raízes, acontece parcialmente fora da planta através, novamente, de um ambiente que a planta modificou e que, por sua vez, modifica a própria planta.


Mais recentemente, um grupo da Universidade de Leeds, na Inglaterra, publicou um artigo mostrando que o trigo possivelmente libera substâncias químicas no solo que irão sinalizar quanto espaço ele tem para crescer. Baseado no acúmulo dessas substâncias hipotéticas e ainda desconhecidas, o trigo concilia o quanto ele pode crescer com o volume de solo disponível no vaso. Assim, ele garante que nunca crescerá mais do que o solo permite, fazendo um uso “ponderado” dos recursos à sua disposição. Novamente, temos uma interação entre o ambiente modificado pela planta para modificar o comportamento da própria planta visando resolver problemas. Inclusive, a capacidade de solucionar problemas é uma das definições mais aceitas de inteligência. Por isso defendemos que os exsudados de raízes são o segundo canal de extensão da cognição das plantas.


Ainda no tema exsudados, outro canal para a extensão da cognição pode ser através da modificação das comunidades de micro-organismos que vivem no solo. Dependendo das substâncias químicas que as plantas exsudam pelas raízes, como ácidos orgânicos mais ou menos complexos, elas podem favorecer ou inibir o desenvolvimento de determinados grupos de micro-organismos. Esses seres, principalmente bactérias, também modificam o solo e liberam substâncias químicas que irão modificar a fisiologia e o comportamento das plantas — e as plantas usam isso ao seu favor.


Há um fenômeno cada vez mais estudado chamado “legado no solo”, ou “memória no solo”, que ocorre quando plantas sofrem algum estresse, principalmente alguma doença. Neste caso, a planta irá modificar a composição química dos seus exsudados, que irá modificar a comunidade de bactérias que vivem junto das raízes, e essas bactérias acabarão por codificar uma memória dessa doença no solo, fora da planta. Se um dia a planta adoecer novamente pelo mesmo patógeno, a “memória imunológica” que ficou armazenada nas bactérias do solo irá ajudá-la a sofrer muito menos do que da primeira vez. Isso foi comprovado ao aplicar no solo “exsudados sintéticos”, quando foi observado que a planta ficava mais resistente a doenças que ela nunca enfrentou, como se tivesse tido uma memória imunológica “implantada”. Além disso, se plantas ingênuas, que nunca adoeceram antes, são plantadas em solos condicionados por plantas que adoeceram, essas plantas tornam-se resistentes também, o que demonstra que a memória imunológica no solo potencialmente pode ser compartilhada com outras plantas da mesma espécie. E memória, como sabemos, é a base do aprendizado, um fenômeno cognitivo. A figura abaixo mostra claramente um fenômeno de aprendizado através da memória no solo.


Gráfico com fotos e linhas vermelhas
O gráfico mostra a severidade de uma doença ao longo do tempo. Quando a planta enfrenta a mesma doença uma segunda vez, a severidade é muito menor se ela estiver em um solo condicionado. Sem essa memória, a doença acaba sendo mais grave (linha pontilhada) | Raaijmakers e Mazzola (2016)

Os estudos com memória no solo acabam evidenciando que a saúde do solo é extremamente importante para o correto desenvolvimento das plantas. Quanto mais rico for o solo em micro-organismos, mais material a planta terá para trabalhar e criar essas memórias. Como consequência, a planta será mais resistente a pestes e doenças. Isso é um alerta para a forma como fazemos agricultura convencional, através de monoculturas que requerem a aplicação de fertilizantes que acabam matando boa parte da microbiota do solo. Sem o suporte desses micro-organismos, é de se esperar que as culturas fiquem mais vulneráveis a doenças, o que irá requerer a aplicação de pesticidas e agrotóxicos que irão adoecer mais ainda o solo, num ciclo vicioso de degradação ambiental. Por isso, é importante buscar soluções agroecológicas que garantam a saúde e diversidade do solo, dentre outros motivos, para dar às plantas as ferramentas que elas precisam para sobreviver com menos intervenção humana.


As redes de fungos micorrízicos


O quarto canal de extensão da cognição das plantas proposto até agora é a celebrada rede de fungos micorrízicos que conectam as plantas debaixo da terra. Esses fungos são muito menores do que as raízes, crescem muito mais rápido e são mais eficientes para encontrar nutrientes no solo. As plantas, por sua vez, são as únicas que podem produzir aquilo que todo o ser vivo quer: glicose, açúcar. Assim, plantas e certos fungos começaram uma parceria em que os fungos buscam no solo os nutrientes e a água que a planta precisa, os quais eles trocam com as plantas pelos açúcares produzidos por fotossíntese. Eles fazem isso a partir de uma interface muito íntima chamada micorriza, em que os fungos crescem para dentro das raízes e fazem conexões com as células das plantas.


As micorrizas são tão vantajosas para os dois parceiros que quase todas as plantas que existem hoje fazem esse tipo de simbiose, uma simbiose que dura mais de 400 milhões de anos e possivelmente foi o que possibilitou as plantas de saírem dos mares e colonizarem a superfície da terra. Além de encontrarem nutrientes, fungos micorrízicos também ajudam plantas a resistirem a secas, ativam seu sistema imune tornando-as mais resistentes a doenças, isolam a ponta das raízes do contato com micro-organismos nocivos, como é o caso dalgumas micorrizas, e até mesmo protegem as plantas contra o excesso de nutrientes no solo.


Essa simbiose é tão intensa que algumas plantas começaram a delegar muito da própria busca por nutrientes a esses fungos, do mesmo modo que muita gente pede comida por aplicativos ao invés de ir ao supermercado ou ao restaurante. Alguns estudos têm mostrado que plantas de raízes grossas tendem a fazer mais esse tipo de troca, possivelmente porque, para elas, as raízes custam muito mais caro que as micorrizas em termos de investimento de glicose. Alguns autores comentam que esses fungos são praticamente “extensões” das raízes, mas nós temos todos os motivos para suspeitar que essa palavra pode ser empregada para além da metáfora.


Grupo de cogumelos numa floresta
Fungos micorrízicos como esta Amanita muscaria poderiam estar estendendo a cognição das árvores com quem elas formam simbioses

Se os fungos encontram nutrientes para as plantas, tomam decisões, guiam as raízes e tornam a solução de problemas e a exploração do mundo muito mais fácil, ou até mesmo possível, esses fungos talvez pudessem ser considerados parte do aparato cognitivo das plantas. O comportamento do fungo é regulado pela planta através do fornecimento de glicose e também da “permissão” de estar associado a elas, pois a planta precisa abaixar sua imunidade localmente para permitir a entrada do fungo, e esse comportamento é reversível caso interesse à planta diminuir o número de micorrizas. Contudo, o comportamento da planta também é manipulado pelo fungo. Por exemplo, há evidências de que ele pode providenciar mais ou menos recursos, ou mesmo mobilizar nutrientes de um lado da rede de micorrizas onde eles são mais abundantes para outro com menor quantidade para aumentar o custo do seu “produto”, pois se há demanda por nutrientes, o preço em açúcares acaba subindo. Apesar de muito surpreendente, é bom deixar claro que não há evidência de que esse comportamento seja uma escolha consciente do fungo, mas um produto da dinâmica da simbiose.


Entretanto, o comportamento de procurar nutrientes requer habilidades cognitivas, e quem tem essas habilidades não é somente a planta ou os fungos, mas as plantas e os fungos, juntos. São ambos que procuram nutrientes ao regular o crescimento e comportamento um do outro, numa conexão tão íntima que é difícil de separar planta e fungo, já que um acaba sendo a continuação do outro.


Uma planta é muito mais do que vemos


Algo que a hipótese da cognição estendida nos ensina é que as plantas são muito mais do que os olhos podem ver. Plantas estão imersas num ambiente profundamente alterado por elas mesmas, e que se retroalimenta ao influenciar as próprias plantas. Suas copas não estão sozinhas no ar, mas mergulhadas numa nuvem invisível de VOCs que leva e traz informações de todos os lados, a todo momento. Suas raízes não estão apenas na terra, mas numa matriz criada pelas próprias plantas para elas e todos os seres que vivem consigo, e essa matriz as ajuda a obter informações sobre o que há ao seu redor e como reagir a obstáculos e resolver problemas. Ao invés de ser vista como na figura acima, uma planta deveria, na verdade, ser vista como na figura abaixo. Plantas são muito maiores e mais dispersas do que imaginamos. São os nós de uma intricada rede de relações no ambiente que se condensa na forma de uma planta, mas que não tem uma fronteira definida e se estende em todas as direções. E se a cognição ocorre no corpo, na matéria, não há limites para ela também.


Esquema de planta como rede em várias cores diferentes
A estrutura cognitiva de uma planta é muito diferente se levamos em consideração a sua dimensão estendida. Plantas são o ponto focal, nós de relações amplas e complexas entre os elementos do mundo. Em verde, representação dos VOCs. Em vermelho, representação de todas as formas de extensão da cognição debaixo da terra, como exsudados de raízes, micorrizas e outros micro-organismos | Parise e Marder (2023)

Neste caso, outra pergunta interessante surge: até aqui falamos, em geral, de uma planta e seu ambiente, mas plantas nunca estão sós. Elas crescem em proximidade umas com as outras, interagindo entre si através de todos esses canais e outros mais. Se VOCs e redes de micorrizas conectam plantas diferentes e permitem comunicação entre elas, onde a estrutura cognitiva de uma planta termina e a da outra começa? O quão fluido é esse processo cognitivo? Como veríamos uma floresta, ou mesmo um jardim, num caso como esse? Uma vez que reconhecemos a cognição estendida das plantas, essas e muitas outras perguntas sobre o processo cognitivo delas e como um fenômeno geral deverão ser abordadas.


Este trabalho foi publicado no fascículo especial Advances in Philosophical and Theoretical Plant Biology da revista científica Theoerical and Experimental Plant Physiology, mantida pela Sociedade Brasileira de Fisiologia Vegetal, que se propôs a refletir, filosófica e ecofisiologicamente, sobre a natureza daquilo que chamamos de planta e que tão facilmente damos por garantido. Nosso artigo pode ser baixado gratuitamente neste linque, e vale a pena dar uma conferida nos demais artigos publicados no mesmo fascículo.


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